sábado, 16 de janeiro de 2016

Além do Muro Mal Pintado

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    Apertava contra o peito a mochila onde guardava suas preciosas sapatilhas, que se moviam no mesmo ritmo e com a mesma força chorada de seu peito que inflava e desinflava enquanto corria pelas ruas daquela cidade vazia. Os garotos que o chamaram de "viado do cacete" vinham atrás, parecendo mais divertidos que ameaçadores, mas sabia que não compartilharia de seu riso. Corria mais rápido que suas pernas aceitavam, por temor de apanhar, por temor deles o virem chorar, por temor de ser mesmo tudo aquilo que eles o chamavam. Dobrou a esquina. Dobrou de ideia. Queria sumir, queria morrer, queria gritar mas ninguém nunca olhava, nunca! 

    Aprendera num programa de TV que em situações de perigo era melhor gritar "fogo!" do que "socorro!", pois a curiosidade é muito maior do que o senso de justiça, ou a compaixão, ou talvez maior que o próprio medo. Mas tinha medo de tentar, não queria ser olhado, não queria ser julgado por mais daquela gente. Odiava aquela gente. Desviava de postes e pessoas com cachorros que até se assustavam por um momento, mas logo voltavam a sua rotina de catar cocô. 

    Num momento de desespero ao olhar pra trás e ver seus perseguidores se aproximando, dobrou uma rua que não conhecia e, sem demora, percebeu seu erro. Havia dado de cara com um belo beco sem saída, uma grande muro de tijolos mal pintado de branco de onde por cima saltavam bananeiras e outras árvores que só servem pra dar moradia a tarântulas. Mas não parava de correr, não parava de chorar, há muito parara de respirar e talvez por isso um pensamento estúpido passou por sua cabeça: dos males, o melhor. Podia deixar que eles o alcançassem, que o batessem e o xingassem, que rissem como as hienas que verdadeiramente eram. De novo. Ou podia correr pra sempre, estatelar-se no muro mal branco e virar um amassado de viado do cacete, a mochila surrada e as sapatilhas pressionadas tão forte contra si que se fundiam com seu corpo. Um pouco de sangue pra variar, um pouco de dor pra variar. Talvez hoje ririam e, satisfeitos, lhe deixariam em paz com sua dor. Olhou pra trás e viu sua imagem nos olhos daqueles meninos, seu corpo espancado no chão, um pinto desenhado em sua cara. Olhou pra frente e viu o muro. Preferiu o muro e nunca, nunca, nunca parou de correr. 

    Seu coração batia tanto que o sentia em cada extremidade do corpo, entalado em sua garganta e sufocando-o enquanto abria e fechava os olhos devagar, ora via tudo branco, ora via tudo preto. E viu o branco, e viu o preto, e o branco, e o preto, e o branco, e o preto, e o alaranjado de um jardim iluminado pelo entardecer que se cobria de flores jovens e sem-vergonha enquanto exalavam seu denso e viciante perfume de romãs. No susto que se seguira tropeçou, caindo de cara e coração (que continuava alojado em sua garganta) no chão mais-macio-do-que-imaginara-mas-ainda-muito-duro. Levantou a cabeça cuspindo vômito e sangue, um pouquinho de dentro da boca, um pouquinho escorria como um riacho nariz abaixo. A dor não lhe permitia enxergar e seu nariz só cheirava vermelho, lhe restando confiar no tato e no inconfundível sabor de grama molhada em sua boca para crer que estava sim naquele jardim que vira por alguns milésimos de segundo. 

    Retirou a mochila ainda presa ao peito para tentar "respirar a maior parte da dor", exercício que aprendera após alguns hematomas e ossos fraturados. Aos poucos voltava a enxergar, aos poucos tinha a impressão de que havia perdido o juízo. Tudo que lhe tocava a vista era jardim, aquele sol refletido na grama viva em tons tão quentes quanto um abraço. Olhou pro caminho de onde viera em busca dos garotos, mas atrás de si só existia um enorme portão prateado trancado a correntes, que apesar de imponente e assustador tão quão velho e enferrujado, nada trancava, pois não estava conectado a muro ou cerca alguma. 

    Levantou-se e contornou o portão, tocando-o admirado enquanto olhava em volta procurando outras sensações, inalando aquele ar tão doce que lhe cobria o cheiro vivo do sangue com um lençol de tranquilidade que aos poucos percorria seu corpo dolorido e, se não lhe curava as feridas da queda, pelo menos as anestesiava o suficiente pra que pudesse mover seu corpo graciosamente por aquele belo jardim. Dançava e pulava como nas aulas de balé, ao som do seu coração já sereno e do canto de pássaros que não enxergava, mas que imaginava por entre as árvores dançando contigo aquela peça tão fina. Se fechasse bem forte os olhos podia jurar que o vento o carregava e seus passos de menino que recém adquiriu as sapatilhas se tornavam os de um verdadeiro artista, como aqueles que via na TV, como aqueles que seus pais acreditavam e encorajavam que viesse a ser. "Você pode tudo", lhe diziam, "o mundo é de quem segue seus sonhos". E seguia sonhando pelo jardim adocicado, enquanto o sol se punha devagar e levava consigo o seu abraço. 

    De repente não se sentia tão feliz, tão calmo, tão único. A pouca luz aquele jardim gradativamente se tornava só mais um mato escuro, o vento com inveja de seus passos levara consigo o cheiro das romãs e o portão que há muito deixara pra trás com suas piruetas e sissones, como num passe de mágica, jazia fincado fortemente ao solo dois passos atrás de si. Não queria que aquilo terminasse, não queria parar de dançar, aquele jardim era o único lugar que amara tão intensamente e por tão poucos minutos! Correu em busca da mochila, não se importando em tê-la  encontrado aberta, o zíper cuidadosamente corrido metade de seu trilho total. Procurava apressado pelas sapatilhas, imaginando que calçá-las certamente lhe devolveria toda aquela inspiração e desejo de viver que sentira há pouco quando o sol ainda não havia desfeito seus laços de amizade, indo embora em direção ao horizonte oeste. 

     Com as solas devidamente vestidas, pôs-se de pé num pulo e logo foi executando um arabesque meio desajeitado, já não mais ouvindo a música dos pássaros que logo se calaram com medo dos morcegos que certamente ali rondavam. Decidido, continuou sua dança torta, fria e inculta, arrastando seu corpo suado e pesado por entre aqueles galhos ameaçadores e folhas que lhe fitavam a nuca. Se enjoava e vomitava aqui e ali, sentindo sua cabeça cada vez mais zonza enquanto perdia o ar em seus pulmões. Caiu ao chão, semiacordado, as sapatilhas fugindo e desnudando seus pés imundos. Num último esforço asmático, arrastou-se de volta aos calçados a tempo de ver, tão solitária e serena em sua forma esmagada, a tímida aranha armadeira que aparentemente se instalara em sua sapatilha esquerda. Chorou uma última gota salgada e fossilizou ali mesmo, pra sempre marcado ao chão do jardim na quinta posição.

     Lá atrás ficou abandonado o muro mal branco, agora pintado com a imagem de um belo jardim. Os três garotos examinavam curiosos o detalhe da caixinha de música jogada, quase enterrada em meio ao verde-marrom, abandonada, triste, sozinha. Por algum motivo isso os incomodava, mas nunca entenderam qual - mesmo assim, naquela noite, não conseguiram dormir. 


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